Notas sobre peste - Como viver-junto em uma G(host) House [1]? - Tscherkassky - O fantasma camarada
Em 2021, em meio à melencolia illa heroica dos estudos, em um daqueles momentos raros mas também ansiados pelos estudantes de letras, me deparei com uma nova palavra: idiorritmia.
Esquisita, a palavra cheirava a formol. Parecia saída de hebdomadários científicos, gabinete de curiosidade médicos. Imagens anatômicas e viscerais vinham ao meu “cinema” interior.
Como arritmia, imaginei, devia ela pertencer ao universo dos sujeitos que não conseguem controlar as sístoles e diástole do seu próprio músculo cardíaco.
Mas era justamente o contrário.
Idiorritmia era um lugar-imaginário onde o que imperava não era a falta de ritmo, mas uma harmoniosa coletividade, cúmplice e silenciosa. Esta seria uma proposição idílica do ensaísta Roland Barthes, quando este pensava em formas de Viver-Junto e idealizava esse espaço-imaginário onde seria composto o texto idiorrítimico.
Esta modalidade de texto, avessa à categoria burguesa do Autor, definia-se como uma produção silenciosa e coletiva, típica da produção celibatária dos monges nos mosteiros dentro dos quais a coabitação não excluiria a liberdade individual.
Naquele momento, durante o intercâmbio da bolsa-sanduíche do meu doutoramento na cidade do Porto, me dei conta que eu estava vivendo o território sensível idiorritimico em sua máxima potência.
Trancada no lockdown, em plena pandemia de COVID-19, eu vivia em um pequeno quarto-sótão. Minha família e amigos chegavam a mim somente como figuras bidimensionais em diminutos ecrãs de tela LCD.
Como companhia eu tinha apenas as gaivotas do Porto - que me olhavam ameaçadoramente através do basculante numa espécie de releitura pós-apocalíptica do filme de Hitchcock- e ouvia a melodia insone dos sinos da Torre dos Clérigos que, por vezes, me faziam acreditar que eu me tornaria a personagem dos versos de The Bells de Poe.
Minha idiorritmia, no entanto, era mais aguda (para continuar no jargão médico) que a de Barthes, pois absolutamente espectral.
A minha condição era duplamente apartada. Numa vida bífida, eu estava fendida entre dois mundos duplos: entre o real e o virtual, mas também entre o novo e o velho mundo.
Vivia uma separação brutal, mesmo radical - como na própria acepção etimológica da palavra, com efeito, se tratava de uma questão telúrica: me faltavam as raízes. Estava entre Brasil e Portugal, era Bárbara - a estrangeira, a outra, selvagem recém-chegada no suposto “velho” mundo, onde, paradoxalmente, para mim, tudo era novo.
“A solidão humana só não é absoluta porque você tem irmãos em determinados momentos da história com os quais você se comunica – ou lendo poetas mortos ou falando com os amigos.”[2]
— Glauber Rocha
Mas o que me salvava de mim mesma, eram os meus interlocutores "fantasmáticos" que me acompanharam em um lento processo solitário e silencioso da escrita - ou tessitura (para continuar no vocabulário barthesiano) - de minha tese de doutoramento.
Esta polifonia silenciosa, que às vezes se tornava uma verdadeira cacofonia, era o que embalava o meu ritmo cardíaco nos bpms certos. Assim fui povoando meus meses de peste com esses espaços-fantasia de idiorritimia, plenos de phasmas, uns camaradas, outros nem tanto…
Alguns fantasmas vieram a mim e me colocaram perguntas que até hoje me perseguem. Compartilho-as aqui neste ensaio, sem eira nem beira, com o leitor (este outro amigo invisível) que- quiça - chegou até aqui sem entender bem sobre o que é esta deriva despropositada.
“Methode ist umweg”
— Disse outro fantasma alemão afeito às constelações. [3]
Para ler o texto completo ver o site oficial do Projecto GHOST : https://www.ghostprojecto.com/espectrografias/brbara-bergamaschi-dilogos-com-as-mulheres-espectrais-do-cinema
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